Não se trata de menino ou menina, mas da liberdade de brincar com qualquer brinquedo
Bonecas são apenas para as meninas? Carrinhos só podem ser dados aos meninos? Brinquedos precisam ser separados por gênero? Brinquedos fazem mesmo alguma diferença em relação ao sexo da criança? Na hora de se divertir, as crianças não costumam fazer esta distinção, mas é na infância que ela começa a ser enraizada, com as atitudes dos adultos, que um dia foram crianças e também “aprenderam” que existe brinquedo de menina e brinquedo de menino.
– Isso é muito comum, uma questão cultural de muitas sociedades, principalmente as ocidentais. É uma construção social histórica de uma sociedade paternalista, em que a força vem do homem e a delicadeza vem da mulher. No entanto, essa separação demarca a representação da sexualidade do homem e da mulher. E a escolha do brinquedo, neste caso, deveria ser da própria criança, porque a criança não vai fazer essa separação: “isso é de menina, isso é de menino”. Isso vem dos adultos. A criança vai separar os brinquedos de acordo com seu gosto, sua identificação, porque o brinquedo é um objeto simbólico – diz a psicóloga, psicanalista e psicoterapeuta de família e casal Aline Vilhena Lisboa.
A jornalista Marília Lamas já se debruçou sobre o tema. Autora do livro “De menina e de menino” (GWS), ela mostra o peso do aspecto cultural na escolha que fazemos na hora das brincadeiras, e questiona essa construção social.
– Sem dúvida, o fato de esse comportamento ser enraizado na cultura torna bem difícil mudá-lo. Trata-se de uma força poderosa. Não é à toa que uma das definições mais famosas de cultura é “a lente através da qual o homem vê o mundo” (Ruth Benedict). Quando aprendemos conceitos e comportamentos desde crianças e os vemos sendo reforçados na família, na mídia, na escola etc, é muito difícil deixá-los de lado. Isso não significa, entretanto, que não seja possível transformar a cultura. Somos nós quem fazemos a sociedade, que se transforma com o passar do tempo. É nosso papel questionar os valores e conceitos que nos são apresentados, em vez de simplesmente aceitá-los. Podemos e devemos lutar para mudar a cultura que nos torna machistas, racistas ou que estimula qualquer tipo de preconceito ou desigualdade. Está nas nossas mãos – diz ela.
Para Marília, da mesma maneira que muitas empresas de cosméticos já se alinharam ao empoderamento feminino, a indústria dos brinquedos responderá às mudanças que começarem a ser percebidas na sociedade.
– É tudo um grande negócio, certo? As empresas de brinquedos, de cosméticos ou de qualquer outro produto existem para gerar lucro, não para transformar a sociedade ou espalhar valores. É assim no capitalismo. Para saber o que vender e como vender, as empresas encomendam estudos de mercado e público-alvo antes de lançar produtos e campanhas de divulgação. Ou seja, se o empresário começa a notar uma mudança na percepção do público-alvo, a tendência é que a divulgação do seu produto acompanhe essa mudança. Se as meninas começam a se interessar por brinquedos antes tidos como apenas masculinos, se os pais passam a se engajar numa educação menos estereotipada quanto aos gêneros, enfim, se a sociedade sinaliza que está interessada numa divisão menos rígida e mais inclusiva, a tendência é que as empresas se adequem a isso e passem a oferecer panelinhas com fotos de meninos na caixa, a colocar meninas em propagandas de carrinhos, enfim, a diversificar sua propaganda, ampliando o alcance de seus produtos. Resumindo: se vai vender, as empresas vão fazer. Não devemos achar, por exemplo, que as marcas de cosméticos que “abraçam” as questões de empoderamento feminino (campanhas como a da beleza real, entre outras) o fazem apenas por boa vontade dos seus acionistas, preocupados em construir um mundo melhor – avalia.
A separação de brinquedos por gênero, no entanto, ainda está muito relacionada à sexualidade.
– Pelo que percebi com a minha pesquisa, a preocupação se deve a uma confusão entre gênero e sexualidade, principalmente. Muitos pais acreditam que um brinquedo pode influenciar a sexualidade de seus filhos. Dar uma boneca a um menino, na visão dessas pessoas, pode influenciar a criança a ser gay. Como se isso fosse possível, e como se fosse um problema, aliás – diz Marília.
Segundo a psicóloga Aline Vilhena, misturar os brinquedos, sem distinção de gênero, não traz nenhum prejuízo às crianças.
– Separar os brinquedos é prejudicial quando os pais, os adultos, querem, de uma forma impositiva, forçar esta separação. Se você juntar num ambiente todos os tipos de brinquedos e explorá-los de um modo geral, a criança não terá prejuízo algum, pelo contrário, ela vai ter sua capacidade representativa e simbólica bem aguçada, bem estimulada. Então, é entender que essa separação de brinquedos vem de uma construção social histórica, vem com base num marcador biológico, e não pelo marcador simbólico. Só que hoje em dia nós damos prioridade, valorizamos, o aspecto afetivo-simbólico, o ato de brincar.
Não se trata de menino ou menina, de masculino ou feminino, mas da liberdade de brincar com qualquer brinquedo.
– Eu diria que este livro é a quitação de uma dívida que eu tinha com a menina inquieta e questionadora que fui. Sempre me incomodei, desde muito pequena, com os estereótipos de gênero. Nunca entendi por que meu irmão ganhava carrinhos e camisas de futebol e eu não, já que eu também gostava disso e pedia esses presentes. Gostava também – e gosto até hoje – das bonecas, mas queria brincar com tudo. E quero viver num mundo em que as crianças possam brincar com tudo, fazer o que quiserem, desde que estejam felizes – afirma Marília.