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No combate ao preconceito

Famílias que convivem com diferentes tipos de preconceito e formas de discriminação

Sabe aquele medo que mães e pais sentem só de pensar que algo de ruim pode acontecer a seus filhos? Há sempre a preocupação com saúde, segurança, educação, tanto no âmbito material quanto emocional. Mas para muitas famílias há ainda a preocupação com o preconceito. Olhares discriminatórios, comentários maldosos e até violência física assombram vários pais. Existem diferentes tipos de preconceito e formas de discriminação. E é também de forma diferente que cada família é afetada. A começar pelo próprio conceito de família. Pai e mãe, duas mães, dois pais, uma mãe, um pai. O que importa? A pergunta poderia ser retórica, mas vale responder: os filhos.

Para Luiza, hoje com 11 anos, ter duas mães sempre foi motivo de orgulho. Mas agora ela está começando a perceber que essa configuração de família ainda causa estranhamento.

– Quando ela era menor, era a primeira coisa que falava na escola com os amigos. Que era adotiva e que tinha duas mães. Conforme foi crescendo, surgiram uns poucos relatos de falas mais preconceituosas de alguns colegas da escola. Mas pouca coisa. A escola nesse caso é fundamental para mediar essas questões com segurança e apoio. Agora ela anda mais receosa. Mudou de escola e não quis de cara falar com os colegas. Relatou num trabalho de escola que gostava de ter duas mães, mas tinha medo dos colegas debocharem. Então, acho que na adolescência essa questão deve ser vivida de forma mais intensa – diz Carol Medeiros, professora e diretora de escola, e mãe de Luiza, que também é filha da advogada Andreia Casati.

Combate ao preconceito: conversar com as crianças ajuda a entender o que elas estão sentindo

Andreia, Luiza e Carol

As mães de Luiza já precisaram conversar sobre preconceito com ela, e sentem que isso será uma questão importante no processo de formação da filha.

– Esse ano ela escreveu isso num trabalho. Aí conversamos, sim. Ela tem agora, um pouco mais velha, mais medo do preconceito. E ela mesma identifica que vem de uma família diferente. Identifica todos os benefícios disso. Os cuidados, o carinho de mãe. Eu reparo bem que agora ela tem tido mais medo. Reparamos olhares de estranhamento. Às vezes, sente vergonha. Enfim, essa tem se tornado uma questão que até então era vivida naturalmente – avalia Carol.

O que mais preocupa Andreia é não poder estar por perto caso a filha sofra alguma violência verbal ou física de homofobia. Já Carol tem medo de a menina “reagir se retraindo, tendo vergonha ou mesmo absorvendo algum preconceito”. São dois corações de mãe apertados, como ficam os corações de mães que sentem alguma ameaça a um filho.

Ameaça, aliás, que mães e pais negros e mães e pais de filhos negros sentem desde sempre. Racismo é crime e, como todo crime, deve ser combatido. E mesmo que, em muitas situações, o racismo não seja explícito, é possível sentir o peso do preconceito no ar.

A assistente social Allyne Senna já foi vítima de preconceito por ser negra e, apesar de nunca ter passado situação semelhante com o filho, Otávio, de 6 anos, sabe que precisa preparar a criança para isso.

– É uma preocupação constante, ainda que meu filho não tenha a pele tão retinta quanto a minha. Tendo em vista os últimos acontecimentos, a cada dia a preocupação aumenta – diz Allyne.

Combate ao preconceito: entender a diversidade e criar empatia 

Allyne e o filho, Otávio

O medo, segundo Allyne, é de que o menino sofra algum tipo de violência por suposições preconceituosas, exclusão e ofensas. A educação de Otávio passa pela conscientização e respeito às diferenças.

– Ainda não houve um papo sobre preconceito, mas trabalhamos muito o conceito de diversidade. – conta Allyne.

Entender as diferenças ajuda a criar empatia. E com empatia fica mais fácil entender o quão árdua é a luta das pessoas contra o preconceito.

Camila Martinez, de 37 anos, tem nanismo, e é mãe de Ana Bela, 4 anos, que também nasceu com má formação continuada congênita, transtorno caracterizado pelo encurtamento dos ossos longos.

–  Acredito que a base que eu tive de família me ajudou e me ajuda a combater o preconceito. Minha família me ensinou a não ter preconceito contra mim mesma, e o conhecimento que recebemos na infância é tudo. Mesmo sabendo que existe e sofrendo o preconceito, absorvo o que é positivo.  Tenho um papel importante na vida da minha filha que é a formação. Não tenho que me preocupar com o que ela vai sofrer. Tenho que me preocupar em lutar contra o preconceito. Cumpro o meu papel de mãe como qualquer outra mãe, orientando e formando minha filha – diz Camila, que é pedagoga e psicomotricista.

Além da formação pessoal, o conhecimento e a experiência profissional ajudam muito Camila a lidar com o preconceito contra o nanismo.

– Como tenho nanismo, posso transmitir de forma real, e não só teórica, a importância de combate ao preconceito,  não só aos alunos mas a todo um corpo docente e famílias. É uma luta, sempre focando na consciência e na não discriminação. Eu me vejo como agente transformadora. Não só acredito, mas faço parte desta sociedade transformadora – avalia Camila.

Combate ao preconceito: escola tem papel importante no combate ao preconceito

Como professoras, Carol, mãe de Luiza, e Camila sabem o quanto a escola é importante no combate ao preconceito. Papel considerado fundamental por Déa Berttran, mestre e doutora em Psicologia Clínica e autora do livro “Amores invisíveis. Casais longevos da diversidade” (Editora de Cultura, 2018).

– Somos o reflexo de nosso meio, o contexto nos constrói, somos formados por imagens, palavras, símbolos, atos, gestos, sentimentos, emoções, pensamentos. Para refletirmos precisamos de palavras. Daí ser importante não somente os conteúdos a ser ensinados como, também, exemplos de atitudes saudáveis e inclusivas – avalia a psicóloga, ressaltando a necessidade de os professores estarem preparados para isso.

É na escola que as crianças podem entender e respeitar as diferenças, num ambiente de trocas e crescimento.

– Percebe-se que a convivência entre diferentes faz com que a criança/adolescente/jovem se abra para uma amplidão de possibilidades existenciais, possa realmente se preparar para ser alguém que faça escolhas, que possa ser o que quiser ser, dono de suas ações e vontades. Só assim não teremos mais a violência homofóbica daquele que não suporta seu desejo e o reprime a ponto de precisar exterminar aquele que realiza o que ele não tem coragem de assumir; a agressão descabida entre peles diferentes e a necessidade de ser ‘macho’, de se impor de forma autoritária, despótica, infeliz – diz a psicóloga.

Combate ao preconceito: buscar conhecer antes de discriminar

Que o preconceito deve ser combatido não há dúvidas. Mas por que ele ainda é tão enraizado e causa tanta violência?

– Tememos o que desconhecemos; o que nos é estranho pode ser muito ameaçador. No meu entender, o preconceito nasce da ignorância e do medo. Receamos mudanças, a tal ‘zona de conforto’ – e tudo é uma questão de ponto de vista. Para os índios que aqui viviam, os brancos europeus não representavam padrão estético de beleza, eram cheios de pelos e de roupas, não tomavam banho, ou seja, nosso imaginário é recheado pelas imagens que nos sensibilizam, nossas opiniões vêm a partir de nossas vivências, somos o resultado de uma longa construção subjetiva. Fora isso, o conhecimento que nos é ensinado é parcial e, por sua vez, também tendencioso e preconceituoso – mulheres em séculos passados eram desenhadas com quadris largos (para parir) e cabeças pequenas (para não pensar), em posições subalternas e sem protagonismo na história – como os pretos, os índios, os que são considerados corpos sem valia pelo “homem-branco-europeu-cristão-heterossexual”. Por isso os produtos culturais necessitam ser instrumentos de ampliação de nossa consciência, nos mostrando o mundo e a diversidade de existências, todas pertencendo ao humano. O machismo – câncer da humanidade – precisa ser confrontado e debelado, para que existam relações igualitárias entre homens e mulheres, bem como com aos que não se identificam com o binarismo de gênero. Só assim homens poderão ser sensíveis e frágeis, enfrentando seus medos, inseguranças e lágrimas, enquanto mulheres poderão ser o que quiserem ser, corpos e mentes livres – explica Déa Berttran.

Combater o preconceito – inclusive os próprios – é proteger crianças e adolescentes, que estão descobrindo o mundo e a si mesmos, e ser solidário com famílias que sofrem preconceito. Só elas sabem o que é maternidade e a paternidade neste contexto.

– Não sei se é mais fácil ou difícil, mas é diferente. Caberá maiores cuidados na escolha das escolas, por exemplo, se isso for possível; ou maior participação nas reuniões de pais/mães. Quanto maior for a transparência, acredito que melhor será o resultado – crianças saudáveis provêm de relações saudáveis, não importa quem as constitua. O que vale é o respeito, amorosidade, dedicação, disponibilidade, sinceridade, entre outros quesitos, que o casal apresenta para seus filhos – afirma Déa.

 

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