A música sempre foi uma potência na vida de Sarah Alencar, mas o verbo compor ganhou novo significado na produção do álbum Nuestro Encontro. As canções foram “gestadas” durante a gravidez da cantora, em meio ao isolamento social na pandemia. Foi assim que nasceram Ana Terra, hoje com 3 anos, e o primeiro trabalho solo da artista, com músicas sobre o maternar, o amor, a ancestralidade.
– Os períodos de gestação e puerpério foram extremamente inspiradores para mim. A gente foi morar na roça para se proteger da pandemia e lá acabei compondo muitas músicas para minha filha e sobre como me sentia naquele momento. A ideia de fazer o álbum mesmo veio um pouco depois, quando o isolamento começou a flexibilizar e voltou a possibilidade de entrar em estúdio para gravar. Minha filha, Ana Terra, já estava com cerca de 1 ano – conta a compositora.
Sarah encontrou na música a força e o alento necessários para viver a gestação na pandemia, e, na gravidez, inspiração e motivação para compor. Música e maternidade caminharam juntas, uma dando suporte à outra:
– Minha conexão com a música me salva sempre. Não só durante a gestação, mas tocar e colocar em música o que eu sinto ajuda, no mínimo, a organizar internamente as coisas e é um jeito de por pra fora. Pensando agora diria que no geral é muito terapêutico pra mim, tanto escrever as palavras, quanto cantar e tocar. Acho que tem uma coisa da relação com o tempo que a gente cria na prática da música que também foi importante para me sentir bem no tempo da gestação. Sobre como a gravidez me ajudou como artista, me tornar mãe me fez sentir muito mais segura. É muito difícil para nós mulheres nos colocarmos no mercado de trabalho, no meio da música. É muito difícil quebrar o silêncio e, para mim, parir e cuidar de uma criança me mostra que sou capaz de coisa demais. Acho que criar um ser humano é a tarefa mais difícil e importante que se possa imaginar, por que não fazer um álbum então, que também é uma maneira de transmitir meus pontos de vista e o que eu tenho pra dar de mim?
E como toda mãe e todo artista sabem há muitas alegrias, mas também medos e ansiedade. Nada ficou de fora do trabalho.
– A gestação já é um momento que costuma vir cheio de sentimentos contraditórios, e gestar durante o isolamento social deu um medo do caramba! A solidão materna ficou acentuada demais. Imagina que a Ana Terra passou o primeiro ano dela inteiro só no meu colo, do pai e da avó, e ainda de máscara. Sobre isso, fiz a música Acalanto. Mas a música, assim pra quem ouve, é sobre aquele desejo profundo de que amanhã seja melhor, que possamos viver sem medo. Sobre a maternidade como um todo, o álbum traz bastantes questões sobre como é ser mãe nesse mundo. São questões que vão desde crises existenciais, essa coisa de quase perder de vista quem se é – como na música Nuestro Encontro -, até ataques ao patriarcado e à visão hegemônica que torna as mulheres e crianças subalternas, como na música Loba – descreve Sarah.
A maternidade proporciona muitas trocas de experiência. Nuestro Encontro é a experiência musicada de Sarah Alencar, e sua maneira de falar a outras gestantes e mamães.
– Falar sobre maternidade é falar sobre a humanidade toda. Muito do que eu trago na temática do álbum surgiu no meu processo de maternidade, mas se aplica a diversos momentos da vida, porque fala de paixão, solidão, indignação… São questões que todo mundo, mães ou não, vivem. Porém, percebo que quando uma mãe ouve o álbum, bate diferente. Eu acho que acaba sendo especial porque faço questão de expor as contradições. Falo do amor que coabita com as opressões que sofremos no dia-a-dia. Da beleza e dos medos de ser mãe nesse mundo. O álbum é um jeito de afagar essa mãe e essa criança que estão ouvindo e dizer: “vai ficar tudo bem”, “está tudo bem sentirmos coisas tão contraditórias nesse momento e a culpa não é sua, é do mundo como ele é”, “fiquemos juntas” – avalia a cantora.
O álbum tem uma poesia musicada, com a voz da autora Carina Castro, que, segundo Sarah Alencar, resume muito bem a mensagem do trabalho. O Quem Coruja reproduz aqui, como um presente da cantora aos leitores.
Monotemática
(Carina Castro)
quando há tempo
caio abismada e lânguida como as
flores que brotam em maio
– tão bonita essa existência…
não acordo com disposição semelhante
mas alguém precisa parir a manhã
ecoa aquela palavra que me tira
o sono e me desperta…-
mãe…
me levanto.
nas noites caio de cansaço
mas crio enquanto todos dormem
coruja
feiticeira
mãe da noite
há um poço fundo de histórias
embaçadas por trás de fundas olheiras
mergulhamos neste noturno oceano
onde nadamos um cardume de sereias solo
cantando madrugada adentro pra curar
a dor dos olvidos
me atravessa a dor das mães de maio
y essa lua rebentando nascimentos
dentes de leite rasgam a gengiva
nos ensinam que o crescimento
carrega esse tanto de dor&febre
e a beleza sem-fim de um sorriso
precisamos morder a vida bem forte
pra que ela não nos faça em pedaços
saber ser flor e solo
