O mundo é colorido e cada cor traz um significado ou simbologia à vida. Matizes que a poeta e pesquisadora Ciça Brandi transformou em melodias e narrativas no trabalho “Cores”, voltado para o público infantil. Com letras repletas de referências culturais, literárias, gastronômicas e até religiosas, a artista mistura tons de som e cor, numa pintura musical pensada para crianças, mas que encanta adultos também
– As crianças sentem grande atração visual pelas cores e se deixam encantar por objetos coloridos. Nas músicas, dando uma sonoridade e uma linguagem poética para cada cor, procurei aguçar o efeito das cores, misturando-as a outros sentidos. Talvez o impacto que eu tive ouvindo alguns álbuns temáticos da minha infância — como A arca de Noé (Vinícius de Moraes), Os saltimbancos (Sérgio Bardotti e L. Enríquez Bacalov na versão de Chico Buarque) e Casa de Brinquedos (Toquinho e parceiros) — tenha me inspirado a compor para esse público. Mas, mesmo adulta, ouço e adoro alguns trabalhos musicais voltados para crianças, como os da Partimpim e do grupo Pequeno Cidadão, de modo que acho que as músicas do meu álbum Cores também não têm restrição de idade – explica Ciça.
Apesar de o lúdico envolver as crianças, o trabalho não se restringe a temas específicos do universo infantil. Para a artista, o mais importante foi respeitar os resultados do processo de criação.
– Foi um caminho espontâneo. O aceno ao público infantil apareceu já no início do processo de criação, e isso nunca foi limitador, pelo contrário, foi sempre estimulante. Algumas músicas trazem essa pegada mais clara, como Amarelo, que tem uma conversa dos meus sobrinhos e primos pequenos no final, e Agenda em branco, que no refrão diz “Ai como é gostoso estar de férias, agenda em branco pra preencher / Roda bambolê, lê um livro, vê TV, tudo nesses dias pode ser”. Outras, como O roxo pede licença e Vem Verde, não têm tanto essa marca infantil, mas estão entre as preferidas de algumas crianças à minha volta. Então, essa fronteira não é muito nítida e acho bom que seja assim – avalia Ciça, recordando uma autora que admira. – Lembro de ter lido que a Lygia Bojunga, uma das minhas escritoras preferidas da infância e de todos os tempos, ganhadora do prêmio Hans Christian Andersen, não pensava no público infantil ao escrever, foi o mercado que classificou os seus livros assim. Para mim foi uma maravilha ter tido acesso às suas obras desde cedo.
“Cores” – Trabalho inspirado em grandes nomes da música
“Cores” é composto por treze canções de autoria de Ciça Brandi, e marca a estreia da artista na música. Ela conta que buscou inspiração em álbuns como “A Arca de Noé”, de Vinícius de Moraes, “Os Saltimbancos”, de Chico Buarque, e “Partimpim”, de Adriana Calcanhotto. Para cada cor, um som: “a música sobre o laranja é um frevo; sobre o vermelho um rock; sobre o amarelo um xote, por exemplo”, diz.
As canções também carregam referências musicais (Alcione, cujo apelido é Marrom; “A cor amarela”, de Caetano Veloso), gastronômicas (“eu quero fios d’ovos, banana, quindim / eu quero pão de queijo, batata e aipim”), religiosas (“e na minha prece / a prata é rosário / e balangandã / tô entre a baiana / e a moça cristã”) e literárias (“Cinza é a pedra / que cruza o nosso caminho / Drummond cantou essa pedra / E não estava sozinho / Cinza parece tormenta / Arrumando o desalinho”).
“Cores” – Um ritmo para cada cor
O álbum abre com Preto no branco, um pop rock dançante que brinca com a expressão e com a ideia de que essas cores são um par complementar.
Na sequência, Vem verde, outro pop rock, em que o contraste sonoro (começa com viola, depois entram guitarra e bateria) dialoga com a esperança e o caráter dúbio da cor (“a cor mais alegre, a cor mais triste”, disse Leminski).
A rosa e o rosa trata do universo feminino da infância à maturidade (“Será que a rosa é dos ventos / e não vai mais a reboque? / Será que ainda é doce grude, bubblegum chiclete ploc?”).
Prata da casa é um baião e brinca com o metal nobre versus a cor em objetos de uso corrente (talher, maçaneta). O arranjo inclui instrumentos metálicos, como o triângulo.
O roxo pede licença é um rock e aborda os lados febril e místico da cor (“Roxo de fome, de raiva, de paixão / Roxo é também quaresma e reflexão”). No refrão, alerta: “Senso comum, o roxo pede licença!”.
Infinita mente azul é serena e tem uma escaleta que remete ao apito de um navio. Traz ondas de “tudo azul” (bem-estar) e outras de melancolia (do blues estadunidense).
Vermelhor é rock’n’roll e fala da cor no universo das crianças (“Pirulito de cereja, Minnie Mouse, catapora / Vermelho parte da infância e aumenta a toda hora”), em sentimentos (vergonha, amor, irritação), lugares (“a China, o planeta Marte”), comidas etc.
Raiz marrom é um coco delicioso, que tem raízes (terra, tronco), sabores (chocolate, café), animais (aranhas, pardais) e desgostos (imprensa marrom).
Transparência é delicada e reflete sobre a cor, ou a falta dela, em coisas palpáveis e nas palavras (“na unha deixa a farpa aparecer” e “numa briga às vezes pode resolver”).
Laranjeiras é um frevo e esse ritmo imprime a potência e os lugares heterogêneos da cor (“É mecânica no filme / é safado no jornal / suco no copo / sol no final / do dia / Alegria laranja”).
Amarelo é um xote-reggae solar. Tem abacaxi, brilho, Van Gogh, Yellow Submarine. Tem alguém que viaja sozinha (e feliz), pois quem ia junto amarelou. Tem o alto astral das crianças conversando sobre coisas amarelas.
A doce Agenda em branco traz muitas referências à cor: nuvem, neve, “pé depois do banho”, “susto que eu apanho”, “papel que não diz nada”, “o meio da jabuticaba”, “coelho da Páscoa” etc. No refrão, enaltece a “agenda em branco” de férias ou feriados, quando se pode fazer o que quiser (“toma picolé, passeia no Centro a pé, pula réveillon de branco e cheio de fé”).
A canção Cinza coitado conjuga as agruras da cor (“coração nublado por um amor terminado”, “a pedra que cruza o nosso caminho” etc.) com o cinza da infância (Dumbo, Ratatouille).
O Quem Coruja amou essa aquarela cantada. Ouça um pouco deste trabalho