Casos de violência obstétrica devem ser denunciados
“O parto normal já é algo doloroso, mesmo sendo lindo. Mas o sofrimento triplica quando não se tem uma assistência adequada, que foi o meu caso. Tive meu filho em uma maternidade da rede pública, a mais próxima do local em que minha bolsa estourou. Só havia uma obstetra no momento, e era muito arrogante. Fez o exame de toque uma única vez, e me deu uma sequência de foras. Falei que não estava aguentando de dor, e ela: “Ouço isso há trinta anos. Bem capaz de você estar aqui de novo no ano que vem”. Passaram-se horas (minha bolsa estourou às 22h e meu filho nasceu às 8h39 da manhã seguinte) e nenhum profissional da saúde foi ver como eu estava. Quando meu companheiro foi procurar a obstetra por um pedido meu, ela respondeu que só iria me ver quando ela achasse necessário. Até que meu filho começou a nascer e só estávamos eu e meu companheiro na sala. Ele saiu correndo atrás de alguém e, por sorte, estava chegando um estagiário no momento, que entrou na sala ainda de mochila e com a roupa que vinha da rua, e fez o parto. Senti muita dor com as contrações durante toda a madrugada, mas o que mais me fez sofrer foi o descaso“.
A noite de sofrimentos ficou para trás há quase três anos. A jovem que relata o ocorrido estava com 22 anos e dava à luz seu primeiro e único filho numa maternidade pública da cidade do Rio de Janeiro. Para resguardá-la, o Quem Coruja não cita seu nome. E para que outras mulheres não passem por situações semelhantes o site buscou orientações da Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética (Anadem), sobre o que caracteriza violência obstétrica e como as vítimas devem agir.
Agressões físicas ou psicológicas durante a gestação, parto e pós-parto são consideradas violência obstétrica
Segundo Raul Canal, que é especialista em Direito Médico, Securitário e da Saúde, e presidente da Anadem, considera-se violência obstétrica todo procedimento ou conduta praticados por obstetras e/ou equipe assistencial, que agridam a gestante, física ou psicologicamente, durante a gestação, na hora do parto ou no pós-parto imediato.
– Pode ser caracterizada por um simples linguajar impróprio, piadas de mau gosto, discriminação da gestante/parturiente/mãe pela sua condição social, pela sua idade, cor da pele ou outras formas discriminatórias, bem como pela prática de atos médicos sem respaldo científico ou desnecessários para o caso concreto e que ponham em risco a integridade física ou psicológica da gestante/parturiente – explica o advogado.
A vítima do relato exposto nesta matéria conta que ficou tão desorientada com tudo o que aconteceu, que, após o nascimento do bebê, só pensava em ir para casa. Hoje, formada como técnica de enfermagem, tem como compromisso tratar os pacientes com a atenção que lhe foi negada. Ela não denunciou o caso à época, e se arrepende. Segundo Raul Canal, a mulher deve mesmo denunciar o fato à comissão de ética do hospital, à Secretaria Municipal ou Estadual de Saúde, e ao órgão de classe (CRM/COREN) a que estiver jurisdicionado o violentador.
– Se for médico, pode ser julgado e, eventualmente, punido pelo respectivo CRM. Se for profissional de enfermagem, pelo respectivo COREN. Pode ser julgado e punido administrativamente pela Secretaria de Saúde, se for hospital público, e pode, inclusive, em qualquer dos casos, sofrer um processo criminal perante a justiça criminal – diz Canal.
Violência obstétrica deve ser denunciada
Muitas mulheres, infelizmente, ainda são vítimas de violência obstétrica. Mas têm sido muitas, também, as denúncias e reclamações levadas aos órgãos competentes, diz o presidente da Anadem:
– Com o esclarecimento cada vez maior dos pacientes, o acesso à informação através das mídias digitais e a facilitação do acesso aos órgãos fiscalizadores, cada dia mais mulheres comparecem perante os órgãos competentes para formalizar essas denúncias. Tem-se com isso a falsa ideia de que os fatos aumentaram. Na verdade, os fatos sempre ocorreram. Só que antes não eram denunciados, ou por desinformação ou pela dificuldade do acesso.
Raul Canal explica que não há estatísticas confiáveis sobre a recorrência de tais fatos, e os casos levados aos CRMs e aos CORENs correm sob sigilo. Mas um levantamento realizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 34 países, identificou os sete tipos mais frequentes de violência obstétrica: abuso físico (como beliscar ou bater); abuso sexual (desde apalpação desnecessária em órgãos íntimos da paciente até masturbação e penetração); abuso verbal (uso de linguagem chula, pejorativa ou ofensiva, tratar a paciente com arrogância e superioridade, dando ordens ou fazendo comentários de forma áspera, rude e deselegante); discriminação em geral (fundada na idade da paciente, na etnia, classe socioeconômica, cultural ou limitações físicas); atos negligentes ou imprudentes nas manobras do parto e condutas excessivamente agressivas de forma desnecessária; desatenção, descuido, má comunicação, não valorização ou apequenamento das queixas da paciente; más condições dos cuidados assistenciais por falta de recursos econômicos, materiais e humanos.
Violência obstétrica: discriminação, descaso, abusos e práticas obsoletas
– Os fatos mais recorrentes são a episiotomia, que é um corte na região do períneo que tem como objetivo alargar o canal do parto, mas que mutila a mãe e que não pode ser feito sem o seu consentimento, e é uma prática habitual nos partos normais. O uso de ociticina sintética para acelerar o processo de dilatação, de forma desnecessária e sem o consentimento da paciente também é muito comum. O “ponto do marido”, que consiste em fazer uma sutura muito maior do que o necessário após a episiotomia para deixar a paciente “mais apertadinha” também é fato corriqueiro. Outro fato comum é a manobra de Kristeller, que consiste em uma pressão muito grande na região mais alta do útero para pressionar a saída do bebê, mas que causa maior dor, desconforto e constrangimento à parturiente – relaciona Raul Canal.
O Quem Coruja, claro, torce para que nenhuma mulher passe por qualquer constrangimento ou agressão física e emocional, principalmente numa hora tão sensível como o momento do parto. Mas reforça a orientação da Anadem: todo e qualquer caso de violência obstétrica deve ser denunciado. O Quem Coruja também tem profunda admiração por profissionais de saúde, de todas as especialidades, e conta com muitos deles para trazer informações aos leitores. Mas faz coro à mãe que compartilhou sua experiência nesta matéria: “Tem que gostar da profissão. Se ela (a obstetra que a atendeu) já está cansada de fazer parto, se aposenta ou parte para outra área. Do que adianta tantos anos de experiência e nenhum amor pelo que faz?”.
Foto em destaque: Imagem de Ulrike Mai por Pixabay